Todo ano era assim, mudava a estação e logo ela chegava com
seu ar urbano naquele bairro do subúrbio, um sacrifício que fazia todo ano para
manter as aparências com a família da casa ao lado. Era a melhor época do ano
pra mim, a que eu mais ansiava. Meu natal particular.
Às vezes, durante o longo período entre uma visita e outra,
sentia vontade de me sentar na janela da sala, assim como os cactos que
minha mãe cultivava, e ficar por ali, aguardando seu retorno. Pensei seriamente
em fazer isso, já até me imaginei ali durante o inverno, com estalactites
penduradas em meu nariz, uma bem grande pendurada no queixo, como uma imensa
barba glacial, e uma em cada orelha, como delicados brincos. Os cílios todos
cheios de neve fina que caiam e derretiam nas rubras bochechas ao piscar. Mas
nesse ritmo não estaria nesse plano astral pra te ver chegar, então desisti.
A noite que antecede seu retorno eu mal prego os olhos,
tamanha vontade de rever seus finos cabelos ondulantes sendo jogados para trás,
seus movimentos de bailarina boêmia e sábia. E lá estava ela, saindo do carro
vermelho novamente. Aposto que estava profundamente aliviada em deixar o
automóvel e o papo furado que o conduzia. Como sempre, cumprimenta o cachorro
por mais de dez minutos. O cachorro é sua pessoa preferida.
Entra e fecham a porta. Sei que irão soterrá-la com
perguntas fúteis e inconvenientes, mas ela é educada demais pra mandar todos
para o inferno. Ela não combina com essa rua empedrada e empoeirada. Ela me
lembra filmes franceses que nunca vi, música alternativa e planetas distantes.
Tenho uma prateleira ao lado do abajur para o caso de um dia ela ser minha, e é
lá no alto que eu vou coloca-la.
Depois de forçar um social simpático e comer sua comida de
passarinho, ela foge para o jardim. Foge pra mim. Fugimos.
Encosta o peito no muro e tira do bolso os cigarros.
Flutuando, sento no muro que nos divide: uma perna em sua vida, outra na minha
fossa. Coloca dois cigarros na boca e os acende de uma vez só: um pra mim, outro
para seus lábios. Longo sorriso, longo silêncio, longa tragada, esse é nosso
“oi”, nosso momento de despir a alma, apenas ondas eletropenetrantes de
sentimentos recém tirados do forno.
― O que
tem pra mim dessa vez?
Consegue ver como o ar fica leve agora? Ele adora brincar
com suas roupas esvoaçantes e roçar seus dentes pontiagudos. E dessa vez a
presenteei com uma pintura mais ou menos assim: coloquei em sua cabeça uma
coroa de flores, enquanto tentava se equilibrar em trombas de elefantes
tailandeses, nos lábios sorridentes não pude deixar de enfatizar os dentes tão
perfeitamente peculiares.
Ela observou por um grande período (maior até do que aquele
em que cumprimenta o cachorro) e entre um riso frouxo e outro pergunta:
―Por
que me fez vampira?
E foi ai que perdi o espetáculo. Sabia o que ela estava
fazendo, me forçando a exprimir meus pensamentos, propositalmente sempre me faz
explicar a arte.
―
Seus dentes são lindos. Combinam com o espírito dos seus olhos, seu gosto por
filmes, sua preocupação com o todo, combinam até com o cachorro, combinam com
minhas estalactites...
É melhor não falar nessas malditas estalactites antes que eu
tenha que explicar o que são.
Goteja no papel. Olho pra cima esperando que a chuva lave a
vergonha do momento. Nada além de céu limpo e estrelas. Ah, estrelas. Quase
começo a aponta-la o nome de cada constelação quando o sibilar de um soluço me
estapeia o estômago. Ela chorava, chorava com susto de felicidade.
―É
realmente muito lindo. Combina com a tintura da minha parede.
E entra, sem dizer mais nada. Ainda bem que sua beleza é um
evento anual.