quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Cortando Despesas

Eu preciso pingar minha tristeza em alguma página.
Só por segurança
Só pra ela não ficar nos cantos dos olhos
Me fazendo a manteiga que derrete sem querer derreter
E não me fazer, daqui uns anos, a tia que chora em casamentos
Aquela que se apaixona por qualquer tolo que toca um instrumento.

Eu preciso encharcar páginas e páginas com essa tristeza.
Pra não engolir
Pra que não fique doendo no estomago e trancando o nariz
E ser sempre a doente, tossindo e fumando
Exalando todo cansaço preso no corpo.

Eu quero é que os papéis se dissolvam na minha tristeza.
Pra parar com a sujeira
Pra parar de dormir em travesseiros d'água
E parar de dar trabalho na limpeza das fronhas com a maquiagem que pintei lá
Pra finalmente
Conseguir dormir sossegada.

Bon Iver Depois da Meia-Noite

Dear,
Você não sabe, mas passei os últimos cinco meses chorando por você nesse travesseiro de fronha roxa, o mesmo que agora (ainda) tem seu cheiro. Quando a chuva cai forte assim, trazendo clarões pro céu escuro da madrugada, lembro das noites sem dormir que enfrentei, e a cada gota que caia no meu telhado barulhento era como retroceder cada dia de pranto. Acho que foi ai que comecei a odiar o barulho da chuva. Parece que a chuva sempre me leva algo. Talvez, em latim a palavra "chuva" signifique algo como "perda".
Desde que eu te ganhei não choveu assim.
Acho que preciso praticar meu latim.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Nota de Guardanapo

O mal de ser essa camada fina de papel ambulante
É que papel absorve tudo
Rasga fácil
O mal é querer carregar tudo consigo e mostrar tudo pro mundo
Mesmo que o diâmetro pra carga seja pouco
E vai querer rimar com os tons de marrom
Vai querer desenhar na mobília empoeirada
Vai trancar o quarto
Deitar no chão
Reclamar de como todo mal
Acaba numa boa criação.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Um poema para se ler com os lábios úmidos


Às vezes eu queria ter teu colo pra chorar,
Ficar sob a vigília dos teus olhos verdes
Teus dedinhos, meus cabelos podiam alisar
E eu cairia no sono, te ouvindo cantar.

Às vezes eu acordo e abro a porta da sala
Fico pensando que você podia morar na casa da frente
Nessa que tem sacada
E ali tu ia tocar violão pra quem passasse
Tenho certeza, que dessas pessoas
Metade iria ficar apaixonada.

Às vezes teu jeitinho me faz querer pintar mil quadros,
Te fazer de mobília do quarto,
Te colocar no bolso,
Te fazer de pingente ,
Pegar você, e temperar meu almoço.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Adeus Primavera


Passarinho feito tu, não tem em qualquer região não
Olha que já viajei muito, e nada me fez calar assim
Eu, que sempre reclamava do chiado píu do pássaro de casa
Hoje quero um só pra mim.

Passarinho feito tu, é todo acanhado assim de vista,
Não tem estação certa pra migrar
O que se sabe é que gosta de fazer ninho na lua
E se por alguém sente afeto, vem na mão roçar.

Passarinho feito tu, nunca me tirou o chão de surpresa
Presta atenção no sibilar, no movimento dos lábios
E te devolve o encanto no pé de cada orelha.
Assim que ninguém estiver olhando, passarinho
Vais parar na minha gaveta.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

2+2=0


Diluindo,
Se foram o sódio, proteína e carboidrato,
Mas pelo menos sobrou o tabaco.
Sobraram as overdoses de noites em claro
Do sono delicado que desistiu, interrompido pela ideia,
O conto, ilusão, burburinho do poema.

Diluindo,
Se foram as roupas limpas
Vestidos em suor, tatuagens das suas digitais.
Há quanto tempo almoçamos cinema?
Perdendo a energia que não suprimos
Com câmeras, camas, calma.

Diluindo,
Se foram água, gás, energia,
Contas que não pagamos
Pois dos papéis fizemos cama
E nunca mais acordamos.


quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Dos seus olhos, chuva.


 Todo ano era assim, mudava a estação e logo ela chegava com seu ar urbano naquele bairro do subúrbio, um sacrifício que fazia todo ano para manter as aparências com a família da casa ao lado. Era a melhor época do ano pra mim, a que eu mais ansiava. Meu natal particular.

 Às vezes, durante o longo período entre uma visita e outra, sentia vontade de me sentar na janela da sala, assim como os cactos que minha mãe cultivava, e ficar por ali, aguardando seu retorno. Pensei seriamente em fazer isso, já até me imaginei ali durante o inverno, com estalactites penduradas em meu nariz, uma bem grande pendurada no queixo, como uma imensa barba glacial, e uma em cada orelha, como delicados brincos. Os cílios todos cheios de neve fina que caiam e derretiam nas rubras bochechas ao piscar. Mas nesse ritmo não estaria nesse plano astral pra te ver chegar, então desisti.

 A noite que antecede seu retorno eu mal prego os olhos, tamanha vontade de rever seus finos cabelos ondulantes sendo jogados para trás, seus movimentos de bailarina boêmia e sábia. E lá estava ela, saindo do carro vermelho novamente. Aposto que estava profundamente aliviada em deixar o automóvel e o papo furado que o conduzia. Como sempre, cumprimenta o cachorro por mais de dez minutos. O cachorro é sua pessoa preferida.

 Entra e fecham a porta. Sei que irão soterrá-la com perguntas fúteis e inconvenientes, mas ela é educada demais pra mandar todos para o inferno. Ela não combina com essa rua empedrada e empoeirada. Ela me lembra filmes franceses que nunca vi, música alternativa e planetas distantes. Tenho uma prateleira ao lado do abajur para o caso de um dia ela ser minha, e é lá no alto que eu vou coloca-la.
Depois de forçar um social simpático e comer sua comida de passarinho, ela foge para o jardim. Foge pra mim. Fugimos.

 Encosta o peito no muro e tira do bolso os cigarros. Flutuando, sento no muro que nos divide: uma perna em sua vida, outra na minha fossa. Coloca dois cigarros na boca e os acende de uma vez só: um pra mim, outro para seus lábios. Longo sorriso, longo silêncio, longa tragada, esse é nosso “oi”, nosso momento de despir a alma, apenas ondas eletropenetrantes de sentimentos recém tirados do forno.

 ­ O que tem pra mim dessa vez?

 Consegue ver como o ar fica leve agora? Ele adora brincar com suas roupas esvoaçantes e roçar seus dentes pontiagudos. E dessa vez a presenteei com uma pintura mais ou menos assim: coloquei em sua cabeça uma coroa de flores, enquanto tentava se equilibrar em trombas de elefantes tailandeses, nos lábios sorridentes não pude deixar de enfatizar os dentes tão perfeitamente peculiares.
Ela observou por um grande período (maior até do que aquele em que cumprimenta o cachorro) e entre um riso frouxo e outro pergunta:

Por que me fez vampira?

 E foi ai que perdi o espetáculo. Sabia o que ela estava fazendo, me forçando a exprimir meus pensamentos, propositalmente sempre me faz explicar a arte.

Seus dentes são lindos. Combinam com o espírito dos seus olhos, seu gosto por filmes, sua preocupação com o todo, combinam até com o cachorro, combinam com minhas estalactites...

 É melhor não falar nessas malditas estalactites antes que eu tenha que explicar o que são.
Goteja no papel. Olho pra cima esperando que a chuva lave a vergonha do momento. Nada além de céu limpo e estrelas. Ah, estrelas. Quase começo a aponta-la o nome de cada constelação quando o sibilar de um soluço me estapeia o estômago. Ela chorava, chorava com susto de felicidade.

 ―É realmente muito lindo. Combina com a tintura da minha parede.

 E entra, sem dizer mais nada. Ainda bem que sua beleza é um evento anual.